
Por Redação
27 de janeiro de 2025Supermercados podem lucrar de forma sustentável com economia circular do upcycling
Em entrevista exclusiva, Claudia Bouman mostra como os supermercados podem liderar a revolução do upcycling combinando sustentabilidade e inovação
O desperdício de alimentos e materiais é um desafio global e, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), anualmente, cerca de 931 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados. Paralelamente, a economia circular desponta como uma solução viável e lucrativa para empresas de diferentes segmentos. Dentro desse contexto, o conceito de upcycling, que é transformar resíduos em produtos de maior valor, ganha força, apresentando um modelo econômico que oferece sustentabilidade ambiental e retorno financeiro.
Para os supermercados, as oportunidades são inúmeras. Ao reaproveitar alimentos e materiais descartados para criar produtos inovadores, como salgadinhos de frutas desidratados ou embalagens reutilizáveis, as redes podem não apenas reduzir custos operacionais, mas também fidelizar um público cada vez mais atento às questões ambientais. Além disso, o upcycling fortalece a confiança das marcas varejistas, criando uma imagem de responsabilidade e inovação que atrai consumidores conscientes e engajados.
Nesta entrevista exclusiva, Claudia Bouman, especialista em consultoria de marca, compartilha insights sobre como os supermercados podem implementar práticas de upcycling, destacando impactos ambientais, econômicos e exemplos de sucesso no Brasil e no mundo. A adoção de estratégias como essas pode transformar o setor varejista, promovendo um impacto positivo em toda a cadeia de suprimentos. Confira a entrevista completa de Bouman para a SuperVarejo.
SV: Quais são os principais benefícios que o upcycling pode trazer para os supermercados, tanto do ponto de vista ambiental quanto econômico?
CB: Primeiramente seria bom diferenciar reciclagem de upcycling. A reciclagem tradicional transforma o resíduo em um produto com menos valor do que tinha anteriormente. Já o upcycling é capaz de transformar um material descartado em uma mercadoria que pode ser comercializada por um preço mais alto. É dessa noção, inclusive, que vem o "up", dando a ideia de "upgrade" — ou de aprimoramento do material reutilizado. De toda forma, o upcycling tem como objetivo eliminar resíduos e poluição, circular produtos e materiais e regenerar a natureza. Ela cria valor para os supermercados ao reduzir custos com descarte de resíduos e, também, na aquisição de matérias primas ao utilizar, por exemplo, frutas que seriam descartadas, e ainda adequadas para consumo, para fabricação de novos produtos de marca própria – como na confecção de pães, bolos, sorvetes, sucos, barras de frutas e cereais etc.
A estratégia também pode atrair consumidores mais conscientes, aumentando a fidelidade e fortalecendo a reputação da marca, considerando que esses clientes podem aumentar o valor percebido ao ter acesso a produtos oriundos de economia circular. Os benefícios para o meio ambiente e a sociedade incluem menores emissões de gases de efeito estufa, água mais limpa e menos aterros sanitários, além de menor impacto ecológico por reutilizar materiais que seriam descartados, como incentivo a essa economia circular e a sustentabilidade. Um grande ganho para a sociedade como um todo!
SV: Pode citar alguns exemplos de redes varejistas que implementam práticas de upcycling com sucesso?
CB: Em minhas pesquisas recentes posso citar o Pão de Açucar e o Carrefour no Brasil, com algumas práticas importantes. O Pão de Açúcar atua com economia circular desde 2015 com o projeto Novo de Novo que visa reformular as embalagens dos produtos de marcas próprias, com objetivo que sejam 100% recicláveis, reutilizáveis e/ou compostáveis até 2030, além de repensar a utilização de materiais pós consumo e a eliminação de plástico de uso único. Já o Carrefour Brasil tem alguns programas como Inovação em embalagens de marca própria, fazendo com que, até 2025, todas elas sejam feitas de materiais recicláveis, reutilizáveis ou compostáveis. Além disso, a companhia se compromete a utilizar 30% de plástico reciclado em suas embalagens, a reduzir o uso de embalagens em 20 mil toneladas e a garantir que todas as embalagens de papel e papelão estejam alinhadas com a política florestal da empresa. Na Europa, segundo o estudo realizado pela Plastic Europe, a disponibilidade de material reciclado pós-consumo aumentou em 70% desde 2018 (6,5 Mt em 2022), e os plásticos circulares agora compõem 13,2% (7,3 Mt) de todas as resinas plásticas convertidas em novos produtos e componentes na Europa. O setor de plásticos está em mais da metade do caminho para realizar a ambição de implantar 25% de plásticos circulares até 2030. Porém ainda são números muito reduzidos, considerando a produção de plásticos na comunidade europeia na ordem de 58,8 Mt em 2022. Bélgica, Espanha, Holanda e Alemanha apresentaram taxas de reciclagem de resíduos plásticos pós-consumo superiores a 35%.
Considerando esses aspectos, posso citar alguns mercados na Bélgica como o KarmaMarkt e a Ohne (cooperativa de supermercados sustentáveis), que estimulam seus clientes a trazerem seus próprios recipientes ou comprarem na loja, oferecendo produtos principalmente de fornecedores locais, de forma a impulsionar a economia local e diminuição de resíduos plásticos. Na Holanda, o supermercado Plastic Free Company oferece produtos orgânicos e livres de plástico, com uma linha de produtos para pele com ingredientes oriundos de upcycling como maçã entre outros. Outro exemplo no país é o Ekoplaza (NL) que vende loções corporais naturais da Tholen - Earth Line embaladas em tubos feitos à base de plantas. Na Itália, em Treviso, tem o Biosapori, cuja missão é facilitar a compra de produtos orgânicos, a preços de venda justos e sustentáveis para o produtor e para o consumidor. Eles também vendem produtos a granel como cereais, leguminosas, frutos secos, além de produtos para higiene pessoal e limpeza doméstica da marca Biolù.
Em Portugal, o Supermercado Continente desenvolveu vários projetos sob o guarda-chuva “Missão Continente” com o objetivo de combater o desperdício alimentar. Entre eles, está a produção de snacks de fruta desidratada e de sucos com maçãs e peras oriundas de desperdício em sua produção. Outro exemplo é o incentivo à compra de bananas solitárias – aquelas que são abandonadas pelos clientes porque despencaram do cacho.
Mais um exemplo na Europa é o Mercadona, rede de supermercados na Espanha e Portugal, que mantém uma série de práticas importantes, focadas em redução de resíduos plásticos com a utilização de sacos reutilizáveis para frutas e legumes, além de procurar formas de reciclar e dar uma segunda vida aos resíduos gerados nas atividades diárias como a recuperação de embalagens de cartão para produzir novas embalagens e a separação de resíduos orgânicos e utilizados para fazer adubo para a agricultura ou para produzir biogás, utilizado como combustível para os transportes urbanos e/ou caminhões de lixo. Já nos Estados Unidos posso destacar o Whole Foods Market (EUA) que trabalha com fornecedores que criam produtos upcycled, como por exemplo a Matriark Foods (empresa criada e gerenciada por mulheres) que recicla excedentes agrícolas e sobras frescas em produtos como molhos feitos de vegetais saudáveis e com baixo teor de sódio.
Imagino que existam outros exemplos mundo afora, considerando que a conscientização sobre a prática de economia circular esteja ganhando algum espaço nas pautas dos governos e empresas com foco em ESG.
SV: Quais categorias de produtos nos supermercados têm maior potencial para a aplicação de técnicas de upcycling, e por quê?
CB: Acaba sendo muito natural pensarmos em alimentos e bebidas, já que vários alimentos têm um curto período de vida útil, gerando muito desperdício e com grande possiblidade de transformação. Pensando em nossas avós, época em que tudo se aproveitava, os supermercados podem desenvolver produtos próprios com subprodutos reaproveitáveis, como polpas de frutas para snacks, cascas para chás ou resíduos de grãos para barrinhas. Nesse aspecto, os supermercados podem reduzir custos operacionais e criar produtos diferenciados para suas marcas. Neste caso, pode fazer parcerias com produtores locais para viabilizarem esses novos produtos. Também existem algumas soluções inovadoras como, por exemplo, um revestimento comestível, feito à base de plantas, criado pela Apeel, ela elimina as embalagens plásticas descartáveis ao mesmo tempo em que combate o desperdício de alimentos por evitar a perda de água e oxidação.
Outra prática é incluir em seu portfólio de produtos marcas que já estejam inseridas no conceito – ao invés de desenvolver produtos de marca própria, estimular indústrias que utilizam o upcycling em seus processos produtivos – por exemplo a Corona, marca de cerveja mexicana, lançou uma embalagem circular para packs de seis unidades de cerveja. O material é feito a partir do reaproveitamento do excedente de palha de cevada.
Além de alimentos e bebidas, também podem ser incluídas a de produtos de limpeza, que utilizam vários tipos de embalagens que podem ser reutilizadas ou feitas de materiais reciclados. Ou ainda a de beleza e cuidados pessoais, como os exemplos citados anteriormente, com ingredientes reaproveitados ou embalagens feitas de materiais reciclados. E por falar em embalagens, não apenas as categorias de produtos, mas as embalagens plásticas utilizadas no supermercado podem ser de base biológica, extraídos de fontes orgânicas, como plantas, microrganismos e gases de efeito estufa.
SV: Como os supermercados podem educar e engajar seus consumidores para valorizarem produtos ou iniciativas de upcycling?
CB: Estimular o hábito com campanhas de conscientização e desmistificar o preconceito em torno da qualidade dos produtos. Os supermercadistas podem oferecer a seus clientes oficinas e receitas de aproveitamento total dos alimentos. Disponibilizar nas lojas materiais de merchandising com a mensagem sobre os produtos upcycled, sua origem e o impacto ambiental gerado pela compra desses produtos. Além disso, os consumidores podem ser estimulados, por meio dos programas de fidelidade, com descontos e recompensas por optarem por esses produtos.
SV: Quais são os desafios mais comuns que os supermercados enfrentam ao adotar práticas de upcycling, e como superá-los?
CB: Quando estamos falando de alimentação e cuidados pessoais, existem as questões em relação às regulamentações sanitárias. Nesse caso é muito importante considerar todas as normas de segurança, inclusive garantir que os fornecedores utilizados também se atenham a elas. Há de se pensar também sobre a complexidade logística do processo e o seu custo inicial elevado, nesse caso recomenda-se desenvolver parcerias, criando uma rede de valor, com empresas especializadas em reaproveitamento de resíduos e investir em tecnologias que possam ser escaláveis ao longo do tempo. O supermercado não fará tudo sozinho, dependerá da cadeia produtiva e de seus fornecedores para viabilizar o upcycling de maneira sustentável para a empresa. Como disse anteriormente, conscientizar o consumidor é muito importante para que esses produtos sejam aceitos evitando possíveis preconceitos em relação à qualidade deles.
SV: Além da redução de resíduos, que outros resultados positivos as técnicas de upcycling podem gerar na cadeia de suprimentos dos supermercados?
CB: Ao introduzir produtos diferenciados, com esse apelo, os supermercados são capazes de atrair novos públicos, aumentando a sua vantagem competitiva e colaborando com a cadeia produtiva, dando incentivo aos fornecedores locais, ONGs e startups nas parcerias para a redução de custos operacionais com descarte de produtos e utilização de matéria-prima para criação de outras mercadorias. Os supermercados podem ter recursos limitados para a produção de produtos, porém eles têm os meios para colocar isso em prática. Por meio de suas políticas, eles podem tornar as práticas comerciais mais justas e ecológicas, tanto dentro de sua própria organização quanto com seus fornecedores e produtores. Por meio de políticas de compras direcionadas e parcerias com produtores locais, os supermercados podem não apenas tornar seu sortimento mais sustentável como também podem incentivar a economia circular e seus clientes a fazerem escolhas sustentáveis por meio de promoções. Posicionar-se como um supermercado sustentável, amplia a visibilidade da marca e sua reputação perante os clientes, fornecedores e sociedade como um todo.
SV: A adoção do upcycling nos supermercados pode ser vista como um diferencial competitivo?
CB: Considerando que o comportamento do consumidor atual está mais direcionado por produtos alinhados aos valores de sustentabilidade e as empresas que lideram práticas inovadoras são mais bem vistas, sem dúvida, é um diferencial competitivo. E, ainda, uma vantagem para aqueles que estão captando recursos, uma vez que as empresas com práticas sustentáveis acabam atraindo mais os investidores.
SV: Quais tendências ou inovações tecnológicas podem facilitar a implementação de práticas de upcycling nos próximos anos?
CB: Os sistemas de automação de reposição podem reduzir custos de compras ao processar informações em tempo real sobre a demanda e os níveis de estoque, permitindo que os varejistas apliquem regras e parâmetros específicos para cada item. Ao alavancar essa tecnologia, os supermercadistas podem entender exatamente quanto produto precisam e em que horários, ajudando-os a evitar problemas com excesso ou falta de estoque e a reduzir o desperdício. O rastreamento também pode ser utilizado pelo uso de IA monitorando e identificando oportunidades de reaproveitamento e conectando a empresas especializadas nesse processo por meio de marketplaces (plataformas digitais) de resíduos.
Nesse aspecto também há uma expansão tecnológica dos equipamentos e máquinas que possibilitam a transformação de resíduos orgânicos em bioplásticos, adubos ou biocombustíveis. E, também, criação ou redesenho de embalagens para serem 100% reutilizáveis por meio de impressão 3D ou programas de logística reversa.