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Entrevista
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Por Redação
3 de julho de 2025

Como as guerras podem impactar na produção de alimentos e insumos? Especialista explica relação

Conflitos no Oriente Médio têm efeito direto nos preços dos supermercados — e no bolso do consumidor

As guerras não afetam apenas os “envolvidos” nos conflitos — elas impactam também os campos agrícolas. Disputas como as travadas entre Rússia e Ucrânia e Irã e Israel geram efeitos diretos na produção de alimentos, no comércio internacional e na segurança alimentar global.

Para entender como esses conflitos interferem nas cadeias produtivas e nos preços que chegam à mesa do consumidor, SuperVarejo ouviu Ahmed El Khatib, professor e coordenador do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP):

SuperVarejo: De que forma os conflitos armados (como Ucrânia x Rússia e Irã x Israel) impactam diretamente a produção agrícola nos países envolvidos?

Ahmed El Khatib: Conflitos armados, bem como as tensões entre nações, produzem efeitos diretos e devastadores sobre a produção agrícola dos países atingidos. No caso da guerra entre Rússia e Ucrânia, os impactos são amplamente documentados: a Ucrânia, conhecida como “celeiro da Europa”, era responsável por cerca de 10% das exportações mundiais de trigo e mais de 40% do comércio global de óleo de girassol antes da invasão russa em fevereiro de 2022.

Com o início da guerra, os campos agrícolas foram destruídos, áreas produtoras foram minadas ou ocupadas por tropas, os trabalhadores migraram ou foram convocados para o front e portos estratégicos, como o de Odessa, foram bloqueados, impedindo o escoamento da produção.

O Irã, por sua vez, tem um papel agrícola mais modesto em termos de comércio global, mas é central no fornecimento de energia e fertilizantes para diversas economias emergentes. Um eventual conflito de grandes proporções com Israel traria riscos à produção interna (já pressionada por escassez hídrica e desertificação), além de comprometer a segurança de rotas estratégicas no Estreito de Ormuz, por onde transita cerca de um terço do petróleo mundial. Isso afetaria o custo da energia global, com reflexos em toda a cadeia agroindustrial.

SV: Quais são os principais efeitos das guerras sobre as cadeias globais de suprimento de alimentos?

AK: Guerras modernas não se limitam às fronteiras dos países envolvidos. Elas impactam de maneira profunda o sistema alimentar internacional, altamente interconectado. A guerra na Ucrânia mostrou como o bloqueio de um único porto pode gerar uma cadeia de desabastecimento global. Países da África Subsaariana, como Somália, Etiópia e Sudão, que dependiam em mais de 90% do trigo ucraniano e russo, enfrentaram escassez imediata. Países como Egito, Bangladesh e Líbano também sofreram aumentos abruptos no preço do pão e protestos populares.

Além do bloqueio físico, conflitos causam disfunções logísticas, encarecem seguros de transporte marítimo, desorganizam contratos futuros de commodities agrícolas e estimulam políticas protecionistas. Após o início da guerra na Ucrânia, mais de 30 países impuseram restrições temporárias à exportação de alimentos e fertilizantes, buscando proteger seus mercados internos. Isso reduziu a oferta disponível no mercado internacional, agravando o problema.

SV: Como a escassez de insumos — como fertilizantes e combustíveis — influencia os custos da produção agrícola durante conflitos?

AK: Um dos efeitos colaterais mais graves dos conflitos armados recentes tem sido a escassez de insumos críticos para a agricultura, sobretudo fertilizantes e combustíveis. A Rússia é um dos maiores produtores mundiais de gás natural, utilizado na produção de fertilizantes nitrogenados. Além disso, a Rússia e Belarus, juntas, representavam cerca de 40% das exportações globais de potássio. Com as sanções impostas ao setor energético e de insumos desses países, os preços explodiram. No Brasil, o preço da ureia passou de R$ 1.200 a tonelada em 2020 para mais de R$ 5.000 em 2022.

Essa elevação nos custos dos insumos afetou principalmente os pequenos e médios produtores, que não têm acesso a crédito internacional ou à compra antecipada em larga escala. Os produtores de milho e soja foram especialmente atingidos, já que essas culturas são intensivas em nitrogênio. O resultado foi uma pressão inflacionária sobre os preços dos alimentos e uma redução na margem de lucro dos agricultores, mesmo em um contexto de valorização das commodities no mercado internacional.

SV: Qual é a relação histórica entre conflitos armados e aumento da fome ou da inflação dos alimentos?

AK: Historicamente, guerras sempre estiveram associadas à escassez de alimentos, aumento de preços e fome. Durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, diversas nações impuseram racionamentos alimentares, e a insegurança alimentar tornou-se um componente estratégico da guerra. Na década de 1980, conflitos civis na Etiópia e em Angola produziram algumas das maiores crises humanitárias da história recente, com milhões de mortos por inanição.

Nos tempos atuais, a guerra civil na Síria e a intervenção internacional no Iêmen reproduziram esse mesmo padrão. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (WFP), cerca de 345 milhões de pessoas enfrentaram algum grau de insegurança alimentar em 2022, com uma parcela significativa residindo em zonas de conflito. Portanto, há ampla evidência empírica da correlação entre guerras e desestruturação dos sistemas alimentares.

SV: E de que maneira sanções econômicas impostas durante guerras podem afetar mercados agrícolas globais?

AK: Sanções econômicas têm se tornado instrumentos centrais da geopolítica moderna. Quando aplicadas a países com papel relevante nas cadeias agroindustriais, elas afetam profundamente os mercados globais. A retirada da Rússia do sistema bancário SWIFT, por exemplo, dificultou o pagamento por insumos agrícolas. Empresas de transporte e seguradoras passaram a evitar negócios com empresas russas, mesmo nos casos em que alimentos e fertilizantes não estavam diretamente sancionados.

Além disso, sanções secundárias — como o impedimento da entrada de navios de certos países em portos europeus — criaram gargalos logísticos e aumentaram os custos de transação. Esse cenário limitou o fluxo de insumos agrícolas para países em desenvolvimento e encareceu a cadeia como um todo. A vulnerabilidade de países importadores líquidos, como o Egito ou o Brasil (em fertilizantes), tornou-se ainda mais evidente.

SV: Quais os reflexos das guerras sobre os preços dos alimentos no Brasil e na América Latina?

AK: No Brasil, os efeitos indiretos dos conflitos se manifestaram com força. Como grande importador de fertilizantes (85% do consumo nacional), o país viu seus custos de produção agrícola dispararem. Apesar da forte performance das exportações de soja e milho — que beneficiaram grandes produtores e o agronegócio exportador — os preços internos subiram substancialmente. Alimentos da cesta básica, como feijão, óleo de soja, arroz e leite, acumularam altas de dois dígitos no IPCA entre 2021 e 2023.

Na América Latina, os efeitos foram desiguais. Países como Argentina e Paraguai também enfrentaram elevação nos custos de produção, mas puderam compensar com aumento das exportações. Já economias mais frágeis ou dependentes de importações — como Cuba, Venezuela e países andinos — enfrentaram surtos inflacionários e aumento da insegurança alimentar.

SV: Há mecanismos ou políticas internacionais capazes de mitigar os impactos de guerras na produção e distribuição de alimentos?

AK: Diversas instituições tentaram mitigar os efeitos das guerras sobre os sistemas alimentares. Um dos casos mais emblemáticos foi a mediação da ONU e da Turquia para a criação da "Iniciativa do Mar Negro", que permitiu a exportação controlada de grãos da Ucrânia durante parte de 2022 e 2023, evitando uma catástrofe alimentar em países africanos e asiáticos. Organizações como a FAO e o WFP também expandiram seus programas emergenciais, mas enfrentaram severas restrições de financiamento.

Ainda assim, o sistema internacional carece de um mecanismo robusto e institucionalizado de governança alimentar em tempos de guerra. A criação de reservas alimentares internacionais, corredores humanitários agrícolas e esquemas de crédito emergencial para países importadores poderia integrar uma nova arquitetura global de segurança alimentar.

SV: Quais as projeções para o segundo semestre para o Brasil e o mundo?

AK: Para o segundo semestre de 2025, as projeções indicam estabilidade moderada, mas ainda com alto grau de incerteza. A expectativa da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) é de que o Brasil tenha uma safra recorde, puxada pela soja e pelo milho, embora o clima irregular e o custo elevado dos insumos ainda representem riscos. A inflação de alimentos deve permanecer controlada, mas sensível a choques externos.

Globalmente, o cenário é mais complexo. Eventos climáticos associados ao El Niño podem afetar a produção no Sudeste Asiático e América Central. Além disso, tensões persistentes no Oriente Médio mantêm os preços do petróleo e fertilizantes voláteis, o que pode influenciar diretamente os custos logísticos e a produção global.

SV: Como esse cenário impacta o contexto do varejo alimentar brasileiro?

AK: O varejo alimentar brasileiro, especialmente supermercados e pequenos mercados de bairro, tem enfrentado um duplo desafio: aumento dos custos logísticos e perda de poder de compra das famílias. Com a alta de preços dos alimentos básicos, consumidores migraram para marcas próprias, produtos mais baratos ou promoções.

A redução do consumo per capita de carne e laticínios nos últimos dois anos é reflexo direto desse movimento. Além disso, o setor tem buscado alternativas como programas de fidelização digital, parcerias com produtores locais, venda de cestas básicas padronizadas e maior presença no e-commerce alimentar. Essas estratégias visam mitigar a volatilidade do setor e garantir alguma previsibilidade ao consumidor.

SV: Na sua visão, como o mundo pode se preparar economicamente para enfrentar futuras crises alimentares decorrentes de conflitos geopolíticos?

AK: Preparar-se para futuras crises alimentares decorrentes de conflitos geopolíticos exige repensar o modelo global de produção e comércio de alimentos. Isso implica investir em sistemas agrícolas mais resilientes e sustentáveis, com menor dependência de insumos importados e maior diversificação de fornecedores e rotas logísticas. É fundamental fortalecer a produção local de biofertilizantes, promover a agricultura regenerativa e criar estoques reguladores estratégicos.

No plano internacional, a coordenação entre países, o compartilhamento de dados sobre riscos climáticos e geopolíticos e a implementação de mecanismos de solidariedade alimentar, como um fundo global de emergência agrícola, são caminhos viáveis. A segurança alimentar, cada vez mais, deixa de ser um problema apenas de pobreza: passa a ser uma questão geopolítica, climática e estratégica.

Foto de capa: Bashar TALEB/ AFP

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